A crise global e a política nacional de recursos hídricos

Por José Machado*

Há um consenso entre os economistas de que o Brasil sairá fortalecido da atual crise econômica e, por essa razão, espera-se uma retomada vigorosa e sustentada do seu crescimento econômico ao longo dos próximos anos, a depender, claro, do desempenho do resto do mundo.

Diante dessa hipótese, deseja-se perscrutar nestas breves notas sobre o impacto que esse cenário poderá acarretar sobre a quantidade e a qualidade da água em nosso país, de modo a balizar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), instituída pela Lei 9433, de 1997.

O objetivo precípuo da PNRH é o de assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, tendo em vista o desenvolvimento sustentável. Dois princípios basilares fundamentam essa Política: a de que a gestão das águas deve ser descentralizada e participativa e considerar os seus usos múltiplos.

As diretrizes a serem seguidas fazem referência à indissociabilidade da gestão dos recursos hídricos nos aspectos de quantidade e qualidade; à integração da gestão dos recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do país; à integração da gestão dos recursos hídricos com a gestão ambiental, a de uso do solo e a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras.

Os instrumentos definidos para viabilizar a gestão são a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, a fiscalização, o enquadramento dos corpos d’água segundo os usos preponderantes, os planos de recursos hídricos e cobrança pelo uso dos recursos hídricos. A Lei 9433 instituiu ainda o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), composto pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, pelos Comitês de Bacia Hidrográfica e pelos respectivos órgãos gestores.

Os Conselhos e Comitês devem ter representação tripartite, composto pelos poderes públicos, pelos usuários de água e pela sociedade civil organizada. A Lei 9984, de 2000, instituiu a Agência Nacional de Águas, atribuindo-lhe, como órgão gestor nacional de recursos hídricos, a responsabilidade de coordenar a implementação da PNRH e de impulsionar a construção do SINGREH. Trata-se de uma Política moderna, longamente amadurecida, e que traz como novidade instigante o protagonismo da sociedade na efetivação da governança das águas.

Tem sido consenso entre os especialistas que esse arcabouço institucional é adequado para proteger e regular o uso das águas brasileiras, ainda que ele tenha mais aderência às regiões de maior densidade urbano-populacional e produtiva e esteja mais compatibilizado com situações onde prevalecem os corpos d’água de regime perene. Isso não inviabiliza, mas dificulta, a boa gestão das águas no semi-árido e nos corpos d’água da região amazônica.

A PNRH oferece boas perspectivas, mas sua implementação é difícil e os resultados não aparecem de um dia para outro. A lei 9433 tem apenas 12 anos e é herdeira de um significativo passivo hídrico-ambiental nas regiões mais populosas e urbanizadas e de maior desenvolvimento do setor produtivo.
Não é trivial a dificuldade para se aplicar uma política nacional num país tão diverso e de dimensões continentais, circunstância agravada pelo fato de a Constituição de 1988 ter definido o duplo domínio das águas entre a União e os Estados, o que exige um esforço considerável de pactuação federativa para a concretização da gestão nas bacias hidrográficas compartilhadas.

O envolvimento dos cidadãos em geral e dos usuários em particular é, como seria de se esperar, inicialmente lento e vacilante, inibindo e retardando o amadurecimento do processo de gestão participativa, que é o cerne da PNRH.

Na esfera dos governos, a não percepção ainda da essencialidade da política de recursos hídricos e a falta de tradição de planejamento integrado são fatores que comprometem gravemente a gestão dos recursos hídricos. Isso sem falar da enorme dificuldade para os governantes, eleitos nas urnas, mesmo aqueles que se situam à esquerda, em assimilar o padrão de gestão participativa, muitas vezes percebida como ameaça, pois não é fácil dividir poder. Esses aspectos são reveladores, sobretudo na quase totalidade dos Estados da Federação.

O fato é que a PNRH está em curso no Brasil, muito se avançou desde a sua deflagração, e isso, por si só, já é uma grande coisa. Com efeito, mencionem-se à guisa de ilustração: a) o Conselho Nacional de Recursos Hídricos funciona regularmente, cumprindo o seu papel de instância máxima do SINGREH; b) todos os 27 estados da federação instituíram as suas respectivas leis de recursos hídricos, habilitando-se a criar comitês de bacia, instituir e fazer funcionar conselhos e órgãos gestores de recursos hídricos; c) foram criados e funcionam aproximadamente 150 comitês de bacia, em sua grande maioria estaduais; d) sob os auspícios dos respectivos comitês federais, nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) e Paraíba do Sul funcionam as agências de água e foram implantados todos os instrumentos de gestão previstos na legislação, inclusive a cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos; e) nessa mesma senda, caminham os comitês federais das Bacias dos Rios Doce, São Francisco, Verde Grande, Paranaíba e Piranhas-Açu; f) a ANA está consolidada como órgão gestor nacional de recursos hídricos, tendo se qualificado pela excelência técnica e pela legitimidade junto às demais instâncias do SINGREH; g) em larga medida graças à ANA tem sido razoavelmente intensa a produção de conhecimento e de publicações técnico-científicas sobre a situação dos recursos hídricos em nosso país; h) a rede hidrometereológica nacional, sob responsabilidade da ANA, através da qual se exerce o monitoramento das águas brasileiras e são compiladas as informações hidrológicas e de qualidade da água, essenciais à gestão e ao planejamento dos recursos hídricos e dos setores usuários, vem se expandindo e se modernizando; i) em breve, estará operativo o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos, de responsabilidade da ANA em cooperação com os estados da federação; j) aprovado pelo CNRH, está em processo de implementação o Plano Nacional de Recursos Hídricos; e assim por diante.

Não obstante, em que pesem os avanços, a PNRH e o SINGREH, no estágio incipiente de implementação em que se encontram atualmente e dado o ritmo lento e às vezes oscilante desse processo nos dias de hoje, ainda são incapazes de responder adequadamente pela regulação e proteção das águas brasileiras. Em muitos estados, a política dos recursos hídricos sequer saiu do papel, em tantos outros funciona precariamente. Em geral, o que se tem preconizado, sem êxito, junto aos estados da federação é, sobretudo, a criação de órgãos gestores de recursos hídricos que tenham a feição de agências de estado, a exemplo da ANA: autonomia administrativa e financeira; servidores do corpo técnico concursados; diretoria colegiada com mandato aprovado pelo Parlamento. Sem essa configuração, a gestão dos recursos hídricos simplesmente não é levada a cabo.

Dos 150 comitês de bacia, poucos são os que têm estrutura razoável para funcionar adequadamente, com as exceções ficando por conta dos citados comitês do Paraíba do Sul e PCJ. Impera o contingenciamento de recursos orçamentários tanto no nível da União quanto dos estados.

O crescimento econômico moderado que perdurou nas últimas décadas foi suficiente o bastante para afetar negativa e drasticamente a disponibilidade e a qualidade da água nas regiões mais desenvolvidas do país. Os conflitos pelo uso da água se disseminaram, ensejando a entrada em ação dos instrumentos de gestão e o estabelecimento de marcos regulatórios, os quais se mostraram muito eficientes até o momento. Vários pactos de alocação de água foram estabelecidos, dentre eles: renovação, em 2004, da outorga do Sistema Cantareira (Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí), principal manancial da capital paulista; Bacia do Ribeirão Pipiripau (DF e GO); Bacia do Rio Preto (DF e MG); Bacia do Rio Javaés (TO); Açude Cocorobó, Rio Vaza Barris (BA); Bacia do Rio Verde Grande (MG e BA); Bacias dos Rios Poti e Longa (CE e PI); Bacia do Rio Quarai (RS). Com a exceção do Sistema Cantareira, onde prevalece o abastecimento público como fator crítico, nos demais, o fator de maior desequilíbrio tem sido a agricultura irrigada. Em todos os casos, os irrigantes tiveram reduzidas as vazões outorgadas.

Um cenário de crescimento sustentado e a taxas mais elevadas da economia brasileira nos próximos anos, e considerando-se os atuais padrões de consumo de água para os vários usos no Brasil, caracterizados por uma cultura do desperdício, seguramente significará uma elevação significativa do patamar da demanda pelos recursos hídricos, gerando pressões sem precedentes e exacerbando os atuais conflitos pelo uso da água, além de desencadear novos, especialmente nas áreas de fronteira agrícola em expansão.

Por outro lado, sem o devido tratamento dos esgotos domésticos e das boas práticas agrícolas que evitem o solapamento das nascentes a erosão e o carregamento de solo, os rios continuarão a ser assoreados e degradados, agravando a escassez de água para os usos mais nobres. Numa perspectiva de longo prazo, todas essas questões poderão ser equiparadas a uma quimera caso se confirmem as previsões de mudanças climáticas ao longo do atual século como decorrência do aquecimento do planeta: os efeitos dessas mudanças climáticas sobre os recursos hídricos poderão ser devastadores na medida em que exacerbarão os eventos críticos extremos (secas/inundações) e os processos de desertificação, com sérias conseqüências sobre a produção de alimentos e o próprio abastecimento humano.

Considerando uma PNRH incipiente e ainda vacilante, que se consubstancia pela relativa precariedade na construção do SINGREH e na aplicação dos instrumentos de regulação e de gestão, há bons motivos para preocupações.

Essa situação, apesar de preocupante, enseja oportunidades. O Brasil detém 12% da disponibilidade de água do Planeta e essa circunstância se constitui numa notável vantagem comparativa, expressa nas potencialidades dos usos múltiplos das águas, tais como, geração de energia hidrelétrica, navegação, irrigação, turismo, abastecimento público, aqüicultura e produção de bens industriais. A matriz produtiva brasileira, e também a energética, se apóia largamente no uso intensivo dos recursos hídricos e essa condição está na base do nosso processo de desenvolvimento agora e no futuro.

Em meio às sombrias projeções sobre o significado que a água, pelo viés da escassez, terá neste século para a economia e o desenvolvimento de muitos países, com reflexos dramáticos sobre as vidas de bilhões de pessoas, o Brasil pode celebrar-se afortunado. Zelar, pois, pela sustentabilidade no uso desse patrimônio natural é uma atitude estratégica para o Brasil e deve, portanto, galgar o topo da agenda nacional.

A percepção da gravidade e do caráter estratégico da água está crescendo no mundo todo, e no Brasil não é diferente. Não é à toa que se multiplicam os eventos para discutir o tema, inclusive naqueles em que predominam os debates sobre economia. O V Fórum Mundial da Água, realizado em março do corrente ano de 2009 em Istambul, foi sucesso incontestável de mídia e de público, tendo havido a participação de representantes de mais de 180 países.

No Brasil, o assunto estava restrito até poucos anos atrás às instituições do incipiente SINGREH e a um círculo muito pequeno de instituições técnico-científicas e de organizações não governamentais especializadas. Hoje, é tema recorrente para debates em entidades de classe, clubes de serviço, faculdades, empresas, centros comunitários, parlamentos, etc. Na mídia brasileira a divulgação de matérias sobre recursos hídricos cresce significativamente. Quem sabe esse fenômeno não altere a percepção dos tomadores de decisão e os façam aderir com mais desprendimento à PNRH?

A legislação de recursos hídricos brasileira, independentemente da necessidade do seu contínuo aperfeiçoamento, oferece minimamente as condições para que o Brasil, com prudência racionalidade e parcimônia, tire o melhor partido possível das suas águas, em prol do seu desenvolvimento. Torna-se necessário e urgente, porém, que essa legislação seja cabalmente priorizada e aplicada, de modo que a gestão e o planejamento dos recursos hídricos triunfem em nosso país como uma Política de Estado, pois, caso contrário, não só teremos a piora da qualidade de vida dos brasileiros, mas também veremos a própria longevidade do prometido ciclo econômico ameaçada, face ao agravamento previsível dos conflitos pelo uso da água em algumas atividades e regiões do país.

Não deve haver tergiversação em torno desse ponto. Além de priorização é necessário velocidade: imprimir à implementação da PNRH e do SINGREH uma velocidade inédita capaz de, num prazo relativamente curto, digamos 5 anos, se tomar um conjunto de medidas que coloquem a gestão das águas no Brasil num estágio que, no ritmo corrente, só seria alcançado daqui a 50 anos.

Por outro lado, a PNRH não se resolve sozinha. Por isso, é absolutamente necessário e urgente que se institucionalize, no âmbito dos governos, uma instância articuladora e integradora das políticas setoriais, de modo que a PNRH se realize como política transversal.

Na verdade, atendendo a uma diretriz preceituada pela lei 9433, trata-se de praticar a gestão integrada dos recursos hídricos sob a perspectiva dos seus usos múltiplos, superando-se o viés hoje existente onde cada setor elabora o seu planejamento unilateralmente, ignorando as interfaces existentes. Há que se compatibilizar o planejamento dos recursos hídricos com os planejamentos do setor de saneamento, de irrigação, de navegação, de geração de energia elétrica, etc.

Uma das mais dramáticas lacunas para os interesses nacionais nesse aspecto refere-se ao planejamento e construção de hidrelétricas sem a devida consideração do potencial para navegação nos corpos d’água com essa vocação. No Rio Tocantins, por exemplo, essa desconformidade está sendo solucionada parcialmente agora, após décadas, com a conclusão das obras de eclusas na hidrelétrica de Tucuruí, faltando ainda implantar as eclusas nas hidrelétricas de Lajeado e Estreito para que a Hidrovia do Tocantins se torne realidade.

Por ser renovável e mais barata, a energia de fonte hidráulica se expandirá no Brasil nos próximos anos, através, sobretudo, dos potenciais existentes nos rios afluentes da margem direita do Rio Amazonas. A ANA vem elaborando estudos com vistas ao Plano Estratégico de Recursos Hídricos das bacias que compõem esse complexo, já tendo concluído que os rios Tapajós e Teles Pires têm excepcionais condições de recepcionar uma abordagem integrada entre geração de energia elétrica e transporte hidroviário. A hidrovia, neste caso, se constituirá na principal alternativa de escoamento, para exportação, da crescente produção de grãos de Mato Grosso. É uma insensatez e até impatriótico insistir na utilização exclusiva do modal rodoviário, em direção aos portos do Sul, para equacionar esse escoamento, uma vez que os custos de transporte são extraordinariamente mais elevados, ademais dos custos para manutenção das rodovias e dos impactos ambientais.

Faz pouco sentido falar na articulação e integração das políticas setoriais, diante da inexistência, no arcabouço do Estado Brasileiro, do Plano Nacional de Desenvolvimento, apesar das tentativas do passado e dos esforços de discussão do atual Governo, no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e da recém criada Secretaria de Assuntos Estratégicos. Sem esse amálgama vertebrador, as políticas setoriais permanecem sem integração e continuam sendo implementadas descontinua e erraticamente, com evidentes prejuízos ao País. Daí que o debate sobre essa lacuna, com vistas à sua superação, deveria ser uma das prioridades da atual conjuntura.

Essa pauta, evocada desde o ângulo onde se situa a PNRH e as exigências para sua implementação, é factível ou é um sonho numa noite de verão? Nas condições brasileiras, confrontadas com tantas urgências e desafios, sobretudo sociais, e com um quadro político-institucional ainda muito instável, brandir por posturas tão instigantes e desafiadoras soa ilusório, mas o que fazer?

Ao se vislumbrar as excelentes perspectivas que se avizinham para o crescimento sustentado da economia brasileira, os brasileiros de todos os matizes políticos e ideológicos não podem abdicar do debate vigoroso sobre o padrão de desenvolvimento que interessa ao País conquistar. Isso implica relativizar a abordagem das urgências que assola, há décadas, o noticiário e a conjuntura e evoluir para um debate estratégico sobre um projeto de nação o qual, a par de reivindicar um padrão de desenvolvimento socialmente includente com sustentabilidade na exploração dos recursos naturais, coloque na ordem do dia a necessidade urgente de se edificar um Plano Nacional de Desenvolvimento capaz de galvanizar o imaginário e os esforços dos brasileiros e tornar auspiciosa a celebração, em 2022, dos 200 anos da Independência.

*José Machado é Diretor-Presidente da Agência Nacional de Águas (ANA)

Fonte: Blog Crise e Oportunidade, em 20/08/2009.

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